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A suposta relação entre o herbicida glifosato e o aparecimento de um câncer já foi extensivamente explorada por grupos ativistas e pela mídia. As evidências científicas, no entanto, sempre apontaram no sentido oposto. Em maio deste ano, um estudo publicado no Journal of the National Cancer Institute acompanhou cerca de 50 mil trabalhadores rurais. A conclusão: o glifosato não está associado com maior incidência de tumores.
Mas aí vem a controvérsia: por que mesmo com esses dados a multinacional Bayer, responsável pela fabricação do composto, acaba de perder um processo bilionário nos EUA para um trabalhador rural que alega ter desenvolvido câncer após ter contato com o tal do glifosato? E por que diversas ONGs e ativistas insistem no fato — não científico — de que ele causa essa doença?
Em parte, isso ocorre por causa de uma confusão ao interpretar o trabalho de um grupo ligado à Organização Mundial de Saúde, a Agência Internacional para Pesquisa do Câncer, conhecida pela sigla IARC. A entidade ficou conhecida por avaliar se uma substância pode suscitar a formação de um tumor ou não. Mas ninguém sabe muito bem como a IARC trabalha e o que faz para chegar às suas conclusões. Para isso, precisamos em primeiro lugar entender bem a diferença entre análise de perigo e análise de risco.
Bola dividida
Você já foi para alguma praia e viu, perto do mar, uma placa amarela com os dizeres “Cuidado, área de tubarão”, ou algo do gênero? Se você ficar na areia, não corre risco de tomar uma mordida, correto? Esse perigo exposto no cartaz indica uma possibilidade de o bicho te comer, mas somente se você entrar na água.
Utilizando esse mesmo exemplo, uma análise de risco implica que você vai fazer algo bastante estúpido e arriscado, como entrar na água para nadar com os tubarões. Agora sim você está correndo risco de morrer! Há uma probabilidade real de ser comido por seres marinhos de dentes afiados.
Isso, claro, vai depender do tempo que você nadar, da profundidade (no raso ou lá no fundão), do número de tubarões que estiverem por perto, enfim, de uma série de fatores que ajudam a calcular a chance de um evento desses acontecer na prática.
Outro exemplo mais corriqueiro: a embalagem da água sanitária, que usamos para limpeza de nossas casas, alerta para o perigo da substância. Mas se ninguém ingerir o produto e usar luvas para manuseá-lo corretamente, não está correndo risco algum.
Obviamente, não existe risco zero. Alguém pode esquecer a água sanitária aberta no chão da lavanderia e o cachorro tomar uns goles. Um carro desgovernado pode invadir o parquinho das crianças e machucar alguém. Um tubarão perdido pode estar no raso e abocanhar um turista desavisado… A única maneira de garantir esse risco zero seria não fazer a faxina, trancar os filhos dentro de casa e cancelar a viagem de fim de ano. Controlaríamos, assim, a exposição aos perigos.
Chegamos então, à clássica fórmula Risco = Perigo + Exposição!
Em outras palavras, o perigo existe e vai continuar existindo. Mas nós só corremos risco se nos expomos àquela situação. Ou seja, a análise de risco pressupõe uma exposição. E isso pode ser avaliado em números. Afinal, quanto maior a exposição, maior será o risco.
E na plantação?
Agora que entendemos direitinho esses dois conceitos, podemos voltar à polêmica do glifosato e mergulhar no trabalho da IARC. O que eles fazem é uma análise do perigo, não do risco. Trata-se de um sinal de alerta e um ponto de partida para futuras pesquisas, mas as conclusões da entidade não indicam um risco real, pois não calculam aqueles dois fatores que nós comentamos nos parágrafos anteriores: exposição e probabilidade.
Ou seja: se um único estudo em animais aponta que pode existir uma relação entre uma determinada substância e o risco de câncer, a IARC classifica aquele produto como uma possível causa da enfermidade.
Nos últimos 50 anos, a agência avaliou mais de mil compostos diferentes e apenas um deles foi classificado como provavelmente não cancerígeno. A verdade é que muitos materiais e substâncias presentes no nosso dia a dia apresentam perigo de provocar um tumor. Está tudo lá, tintim por tintim, na classificação do IARC. E nem por isso precisamos deixar de consumi-los ou bani-los do mercado.
Como é feita a classificação?
O IARC divide os agentes em grupos distintos. No grupo 1, estão aqueles que certamente causam câncer em seres humanos. Fazem parte dele as bebidas alcoólicas, a poluição, o cigarro e a luz solar. Mas isso não quer dizer que o risco de todas essas substâncias é o mesmo. Ou seja: não dá pra afirmar que tomar uma única taça de vinho vai, automaticamente, formar um tumor. Mas uma pessoa dependente de álcool, que consome grandes quantidades todos os dias, certamente apresenta uma probabilidade muito maior de desenvolver a doença no longo prazo.
Seguindo em frente, temos o grupo 2, onde estão os agentes que são provavelmente carcinogênicos para as pessoas. É aqui que se encontra o glifosato, assunto principal de nossa coluna. Junto com ele, aparecem o trabalho noturno, o ofício de cabeleireiro e o consumo de frituras. Dentro dessa categoria, encontramos também o café, o picles e o Aloe vera.
Se a gente levar a ferro e fogo tudo o que vimos até agora, pode esquecer a cervejinha, a batata frita, os cremes que deixam o cabelo bonito e perfumado, a dose diária de cafeína…
O caso do café, aliás, é outro ótimo exemplo de como uma análise de perigo pode ser mal interpretada. O grão de café, quando torrado, libera um composto que pode ser cancerígeno. Mas tudo depende da exposição! O problema só é real se ingeríssemos aproximadamente duas mil xícaras da bebida por dia durante um ano! Não há quem aguente!
E, mesmo se cumpríssemos essa tarefa absurda, ainda assim o risco de câncer seria mínimo, apesar de real. Provavelmente, morreríamos de overdose de cafeína muito antes disso…
Mas olha que loucura: a confusão sobre a tabela da IARC é tão grande que na Califórnia, nos Estados Unidos, existe uma lei que obriga os estabelecimentos que vem comida a colocarem um aviso de que a bebida pode ser cancerígena.
De volta à lavoura
No caso do glifosato, a confusão é mais grave: a classificação da agência da OMS não levou em consideração o último estudo mencionado, que analisou mais de 50 mil trabalhadores rurais e concluiu que o herbicida não apresenta nenhuma relação com o câncer.
O artigo em questão fez uma análise de risco. Ele avaliou a exposição do trabalhador a diferentes quantidades de glifosato e não encontrou nenhuma conexão com os tumores, mesmo quando a exposição era aumentada. Se houvesse uma relação de causa e efeito, seria esperado que os casos da doença aumentassem, o que não aconteceu.
No processo bilionário contra a Bayer, além de a justiça americana ter desconsiderado as evidências científicas mais atualizadas, ainda ignorou estudos específicos sobre o linfoma não-Hodgkin, o tipo de câncer que o trabalhador alega ter desenvolvido por causa do composto.
Há relatos de caso que relacionam o trabalho rural com alguns tipos de câncer, como esse linfoma. Mas é extremamente difícil isolar os fatores específicos que poderiam estar por trás da enfermidade. Afinal, lavradores ficam mais expostos ao sol, inalam mais fumaça de diesel, poeira, pesticidas, fertilizantes… Como medir o impacto de cada um deles?
Outra coisa: o número de pessoas com câncer que tiveram algum contato com glifosato é muito pequeno. No caso do linfoma não-Hodgkin, apenas 3% dos pacientes se encaixam nesse critério. Os outros 97% nunca foram expostos ao herbicida. Com uma taxa tão pequena, que não parece estar crescendo de maneira significativa nos últimos anos, não há como estabelecer qualquer relação.
Assim, da próxima vez que você estiver em um bar com os amigos, com direito a cervejinha e batata frita (sempre em doses moderadas, claro), e alguém falar que o glifosato causa câncer, explique bem a tabela da IARC para ele. Ah, e no final, não se esqueça de pedir aquele cafezinho, hein?
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